segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

O Arquétipo Mãe







O Arquétipo Mãe

por Carl Gustav Jung

O aspecto positivo do primeiro tipo, ou seja, a exacerbação do instinto materno refere-se àquela imagem da mãe que tem sido louvada e cantada em todos os tempos e em todas as línguas.
Trata-se daquele amor materno que pertence às recordações mais comoventes e inesquecíveis da idade adulta e representa a raiz secreta de todo vir a ser e de toda transformação, o regresso ao lar, o descanso e o fundamento originário, silencioso, de todo início e fim. Intimamente conhecida, estranha como a natureza, amorosamente carinhosa e fatalmente cruel - uma doadora de vida alegre e incansável, uma mater dolorosa e o portal obscuro e enigmático que se fecha sobre o morto.

Mãe é amor materno, é a minha vivência e o meu segredo. O que mais podemos dizer daquele ser humano a que se deu o nome de mãe, sem cair no exagero, na insuficiência ou na inadequação e mentira - poderíamos dizer - portadora casual da vivência que encerra ela mesma e a mim, toda humanidade e até mesmo toda criatura viva, que é e desaparece, da vivência de que somos os filhos?

No entanto, sempre o fizemos e sempre continuaremos a fazê-lo. Aquele que o sabe e é sensível não pode mais sobrecarregar com o peso enorme de significados, responsabilidades e missão no céu e na terra a criatura fraca e falível, digna de amor, de consideração, de compreensão, de perdão que foi nossa mãe. Ele sabe que a mãe é portadora daquela imagem inata em nós da mater natura e da mater spiritualis, da amplitude total da vida à qual somos confiados quando crianças, e ao mesmo tempo abandonados. Ele também não pode ter dúvida alguma em libertar a mãe humana dessa carga assustadora, pelo respeito que deve a ela e a si mesmo.

É precisamente este peso de significados que nos prende à mãe e acorrenta esta ao filho para a ruína anímica e física de ambos.

Nenhum complexo materno é resolvido, reduzindo-o unilateralmente à mãe em sua medida humana; é preciso retificá-la de certa forma. Corre-se desta forma o perigo de decompor em átomos também a vivência da “mãe", destruindo assim um valor supremo e atirando fora a chave de ouro que uma boa fada havia colocado em nosso berço.

Por isso o homem sempre associou instintivamente aos pais (pai e mãe) o casal divino preexistente na figura do pai e mãe do recém-nascido, a fim de que este último nunca se esqueça, quer por inconsciência, quer por um racionalismo míope, de conferir aos pais um caráter divino.

O arquétipo é a princípio muito menos um problema científico do que uma questão importantíssima da higiene anímica. Mesmo que nos faltassem todas as provas da existência dos arquétipos, e mesmo que todas as pessoas inteligentes nos provassem convincentemente de que os mesmos não podem existir, teríamos que inventá-los para impedir que os nossos valores mais elevados e naturais submergissem no inconsciente. Se estes valores caírem no inconsciente, toda a força elementar das vivências originárias desaparecerá com estes. Em seu lugar, surgiria a fixação na imagem materna, e, depois que essa fosse devidamente racionalizada, ficaríamos completamente presos à ratio humana e, a partir daí, condenados a acreditar exclusivamente no racional. Por um lado, isto é uma virtude e uma vantagem; por outro, uma limitação e um empobrecimento, porque assim nos aproximamos do vazio do racionalismo e do "íluminismo". Essa Déesse Raison espalha uma luz ilusória, que só ilumina o que já sabemos e oculta na escuridão o que seria necessário conhecer e conscientizar.

Quanto mais independente for o comportamento do entendimento, tanto mais este se torna puro intelecto, colocando opiniões doutrinárias em lugar da realidade, enxergando não o homem como ele é, mas uma imagem ilusória do mesmo. Quer o homem compreenda ou não o mundo dos arquétipos, deverá permanecer consciente do mesmo, pois nele o homem ainda é natureza e está conectado com suas raízes. Uma visão de mundo ou uma ordem social que cinde o homem das imagens primordiais da vida não só não constitui uma cultura, como se transforma cada vez mais numa prisão ou num curral. Se as imagens originárias permanecerem de algum modo conscientes, a energia que lhes corresponde poderá fluir no homem. Quando não for mais possível manter a conexão com elas, a energia que nelas se expressa, causando o fascínio subjacente ao complexo parental infantil, retorna ao inconsciente. Desta forma, o inconsciente recebe uma irresistível carga de energia que atua quase como uma  ilusão em qualquer ponto de vista ou tendência que nosso intelecto possa apresentar como meta à nossa concupiscência. Deste modo o homem fica irremediavelmente á mercê de sua consciência e de seus conceitos racionais no tocante àquilo que é certo ou errado.
Longe de mim desvalorizar o dom divino da razão, esta suprema faculdade humana. Mas como senhora absoluta ela não tem sentido, tal como não tem sentido a luz num mundo em que está ausente seu oposto, a obscuridade.

O homem deveria dar atenção ao sábio conselho da mãe e obedecer à lei inexorável da natureza que delimita todo ser. Jamais deveria esquecer que o mundo existe porque os seus opostos são mantidos em equilíbrio. O racional é contrabalançado pelo irracional e aquilo que se planeja, pelo que é dado. Esta incursão no campo das generalidades foi provavelmente inevitável, pois a mãe é o primeiro mundo da criança e o último mundo do adulto.

Todos nós somos envolvidos pelo manto dessa ísis maior, como seus filhos.

Agora porém queremos voltar aos nossos tipos do complexo materno feminino. No homem, o complexo materno nunca se encontra em estado "puro", isto é, ele vem sempre misturado ao arquétipo da anima, resultando dai o fato de as afirmações do homem sobre a mãe serem quase sempre emocionais, isto é, preconceituosas, impregnadas de "animosidade". A possibilidade de examinarmos os efeitos do arquétipo da mãe, livre da interferência da "animosidade" só existe na mulher, o que poderá dar certo apenas nos casos em que ainda não se desenvolveu um animus compensatório.

Trecho extraído do livro: Os Arquétipos do Inconsciente Coletivo